domingo, 21 de agosto de 2011

Tonino Guerra








Tonino Guerra

CANTO NONO

Terá chovido durante cem dias e a água infiltrada
pelas raízes das ervas
chegou à biblioteca banhando as palavras santas
guardadas no convento.

Quando tornou o bom tempo,
Sajat-Novà o frade mais jovem
levou os livros todos por uma escada até ao telhado
e abriu-os ao sol para que o ar quente
enxugasse o papel molhado.

Um mês de boa estação passou
e o frade de joelhos no claustro
esperava dos livros um sinal de vida.
Uma manhã finalmente as páginas começaram
a ondular ligeiras no sopro do vento
parecia que tinha chegado um enxame aos telhados
e ele chorava porque os livros falavam.

TONINO GUERRA, O Mel, Assírio & Alvim,

Tonino Guerra

O VALE DAS IGREJAS BRANCAS

Eram doze as igrejas brancas que sobressaíam dentro do vale. Primeiro quebraram-se os vidros das janelas, depois todas as portas apodreceram e os pregos baloiçavam no meio da carne infecta das tábuas cruzadas que estavam cheias de buracos.
Desfizeram-se naquele ano que choveu todo o verão até à primeira feira de Outubro. Os pregos sustinham bocados de madeira que formavam uma transparência que mais parecia uma teia de aranha. Um dia de grande vento, os pregos começaram a voar e não ficou nem sequer a sombra das portas.
Quando os pardais se puseram a fazer balbúrdia lá dentro, o ar ficou cheio de penas que caíam no chão como se tombassem das asas dos anjos em voo no tecto.
De repente, uma noite, as igrejas ruíram todas juntas.
Um montanhês que vive abaixo de Badia ergue a mão direita com o cajado e aponta lá no fundo do vale uns montões de pedras e caliça brilhantes como baba de caracóis.

TONINO GUERRA; O Livro das Igrejas Abandonadas, Assírio & Alvim



NO AZUL ÁRABE DE SAMARCANDA

Um domingo, no azul árabe de Samrcanda, Amid Aka viu caminhar ao seu encontro dois forasteiros. Vinham ao fundo da avenida e, seguramente, procuravam chegar à sua loja, famosa pelas melancias que se comem durante o tempo em que as areias de deslocam. Num dado momento, os dois viraram em direcção do seu alpendre de madeira que cobre, de sombra, algumas mesas. No lavatório, apoiado contra o muro externo, lavaram as mãos. Amid Aka foi buscar duas melancias à loja fresca. Quando regressou, sob o alpendre, viu que um dos dois homens já não estava. Ao pousar as melancias, diante do que ficara, pergunta-lhe a razão pela qual seu amigo se ausentara. O homem fixou-o, com o rosto envolto numa expressão de perda. Limpou a fronte, coberta por gotas de suor, e, exausto, levantou-se da mesa dando sinais de partir. Mas antes disse: «Desde há algum tempo que todos me vêem na companhia de alguém». E afastou-se, pesaroso, caminhando ao longo da avenida coberta de pó.

TONINO GUERRA, Histórias de uma noite de Calmaria, Assírio & Alvim