quarta-feira, 7 de setembro de 2011

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Tomaz Pinto Brandão



SOB O SIGNO DO RISO

(…)
Assim foi a vida e a morte de Tomaz Pinto Brandão. Um enorme poeta satírico que hoje ninguém conhece e que fez rir a fidalguia e os peralvilhos de Lisboa cujos costumes obedeciam à batuta do opulento e freirático D. João V. As suas sátiras, que dentro da boa tradição histriónica, não poupavam o próprio rei, eram disputadas como nas épocas mais pudibundas o foram as proibitivas ilustrações de certas fantasias de sangue. O seu nome foi surripiado à história da literatura pelo remorso daqueles a quem o bobo fez rir.

É nisto que medito ao ler a legenda que circunda o retrato da sua face voltaireana. Viveu de Alegrar a Gente e Morreu de Fome, diz a fatal legenda. Este, o tributo de um homem que soltou as verdades que só voam com as asas do riso e que morreu de fome porque, fazendo rir, obrigou os homens a serem sinceros.

Natália Correia, A Estrela de cada um


*****

DÉCIMAS

Senhoras, eu ‘stou picado;
Tenham Vossas Excelências
todas quantas paciências
eu tive no seu chamado;
cuidei que por achacado,
doídas da minha tosse
a meter-me-iam na posse
de uma merenda afamada,
e que achava quando nada
cinco condessas de doce.

Não me enganei, porque alfim
todas vinham cheias grátis
de vanitas vanitatis,
que isto é fofa em latim.
Tomara eu para mim,
por bem ganhada fazenda,
quanta folhage’ estupenda
traziam nas suas rodas,
mas com tal donaire todas
que puxam por muita renda.

Oh! quem pudera cantar
(para bem me vingar dela)
uma que à sua janela
mil vezes vejo Assumar!
Mas obriga-me a calar.
Outra da mesma feição
que é capaz, e com razão,
de prantar-me no focinho,
que farto de S. Martinho
tenho sede a S. João.

Outra branca em demasia
não era tão confiada,
posto que estava enfiada
talvez do que não queria:
mas na flor, na louçania,
na suavidade e na cor,
podia largar o amor
por ela redes e barcos,
porque debaixo dos Arcos
não vi semelhante flor.

Outra tesa de pescoço
me chamou, por embeleco,
magro, quando não sou seco:
velho, quando sou seu moço;
desdentado, quando eu posso
morder (como bem se prova
no estilo da minha trova).
Mas, se a chamar nomes vai,
ouça novas de seu pai,
folgará de Ouvi-la nova.

Outra prezada de prosa,
e em tudo perliquiteta,
bem mostra no ser discreta
quanto seria formosa:
por criar sangue, teimosa
comigo esteve a intender,
e a picar; mas a meu ver
creio que escusava tal;
Pois de sangue em Portugal
veias tem como é mister.

Uma hora de ajoelhar
me tiveram posto ali;
mas se faltaram a si,
eu a mim não sei faltar;
que não quero arrebentar
disso que vim embuchado,
pois sem comer um bocado
por tão vergonhoso meio,
não deixei de vir bem cheio,
porque sal muito inchado.

Enfim, se neste tratado
alguma tenho ofendido,
já me prostro arrependido
de ser tão arrazoado:
já tenho desabafado;
já disse tudo o que quis;
porém neste, enquanto diz
a musa praguejadora,
que qualquer é mui senhora
do seu doce, e seu nariz.

Anne Brigman (1869 - 1950)







sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Setembro



Michael Earl Craig

GAMES IN THE SAND

As a boy I was taught not
to gobble my chocolates.
I had just learned to walk
and I’d play a game in the sand
with the other children.
I would stand there with my stick
and draw an animal from memory.
A cougar. A vole.

I’d draw an animal from memory
and ask them to guess.
If they guessed wrong
something terrible would happen
that week to someone in their family.

And then there’s you.
When you were young you’d lay about
on a huge silk cushion
pulling the wings off hornets,
careful not to disturb them
in any other manner.
We were made for each other.

You, you gobbled your chocolates,
but we worked on that.
Now those days are behind us.

And you say “huffing gas again.”
And I can’t keep from smiling a little.
As tourniquets of light cut across our field of vision.
And childhood memories flash like swans.
And we can run down the gazelles just by thinking it.
And it’s still like being little, really.

M.E.C.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

MARK LAMMERT



A MORTE DE SÉNECA


Que pensou Séneca (sem o dizer)
Quando o capitão da guarda pessoal de Nero mudo
Tirou da couraça a sentença de morte
Selada do discípulo para o mestre
(Tinha aprendido a escrever e selar
E a desprezar todas as mortes em vez
Da própria: regra de ouro de toda a arte da política)
Que pensou Séneca (sem o dizer)
Quando proibiu de chorar os convidados e os escravos
Que tinham partilhado com ele a última refeição
Os escravos no topo da mesa AS LÁGRIMAS SÃO ANTI-FILOSÓFICAS
TEMOS DE ACEITAR O QUE FOI DECIDIDO
E QUANTO A ESTE NERO QUE MATOU
A MÃE E AS IRMÃS PORQUE É QUE ELE
HAVIA DE ABRIR UMA EXCEPÇÃO PARA O SEU MESTRE PORQUÊ
PRESCINDIR DO SANGUE DO FILÓSOFO
QUE NÃO LHE ENSINOU A DERRAMAR SANGUE
E quando mandou que lhe abrissem as veias
Primeiro as dos braços e à mulher
Que não queria sobreviver à sua morte
Com um corte feito por um escravo provavelmente
Também a espada sobre a qual Bruto se deixou cair
No fim da sua esperança republicana
Teve de ser empunhada por um escravo
Que pensou Séneca (sem o dizer)
Enquanto o sangue lento de mais abandonava
O seu corpo velho de mais e o escravo obedecendo ao senhor
Abria também as veias das pernas e da dobra dos joelhos
Murmúrio com as cordas vocais já secas
AS MINHAS DORES SÃO PROPRIEDADE MINHA
A MULHER QUE VÁ PARA O QUARTO AO LADO QUE VENHA O ESCRIBA
A mão já não conseguia segurar o estilete
Mas o cérebro continuava a trabalhar a máquina
Produzia palavras e frases anotava as dores
Que pensou Séneca (sem o dizer)
Entre as letras do seu último ditado
Deitado na otomana do filósofo
E quando esvaziou a taça o veneno de Atenas
Porque a morte se fazia ainda esperar
E o veneno que a muitos ajudara antes dele
Só podia escrever uma nota de pé de página no seu
Corpo já quase sem sangue mas não um texto em letra de forma
Que pensou Séneca (finalmente sem fala)
Quando foi ao encontro da morte no banho de vapor
Enquanto o ar lhe dançava diante dos olhos
O terraço escurecia de um confuso bater de asas
Provavelmente não de anjos a morte também
Não é anjo no tremular das colunas ao reencontrar
A primeira folha de erva que tinha visto
Num campo perto de Córdova alta como árvore nenhuma

Heiner Müller

domingo, 21 de agosto de 2011

Tonino Guerra








Tonino Guerra

CANTO NONO

Terá chovido durante cem dias e a água infiltrada
pelas raízes das ervas
chegou à biblioteca banhando as palavras santas
guardadas no convento.

Quando tornou o bom tempo,
Sajat-Novà o frade mais jovem
levou os livros todos por uma escada até ao telhado
e abriu-os ao sol para que o ar quente
enxugasse o papel molhado.

Um mês de boa estação passou
e o frade de joelhos no claustro
esperava dos livros um sinal de vida.
Uma manhã finalmente as páginas começaram
a ondular ligeiras no sopro do vento
parecia que tinha chegado um enxame aos telhados
e ele chorava porque os livros falavam.

TONINO GUERRA, O Mel, Assírio & Alvim,

Tonino Guerra

O VALE DAS IGREJAS BRANCAS

Eram doze as igrejas brancas que sobressaíam dentro do vale. Primeiro quebraram-se os vidros das janelas, depois todas as portas apodreceram e os pregos baloiçavam no meio da carne infecta das tábuas cruzadas que estavam cheias de buracos.
Desfizeram-se naquele ano que choveu todo o verão até à primeira feira de Outubro. Os pregos sustinham bocados de madeira que formavam uma transparência que mais parecia uma teia de aranha. Um dia de grande vento, os pregos começaram a voar e não ficou nem sequer a sombra das portas.
Quando os pardais se puseram a fazer balbúrdia lá dentro, o ar ficou cheio de penas que caíam no chão como se tombassem das asas dos anjos em voo no tecto.
De repente, uma noite, as igrejas ruíram todas juntas.
Um montanhês que vive abaixo de Badia ergue a mão direita com o cajado e aponta lá no fundo do vale uns montões de pedras e caliça brilhantes como baba de caracóis.

TONINO GUERRA; O Livro das Igrejas Abandonadas, Assírio & Alvim



NO AZUL ÁRABE DE SAMARCANDA

Um domingo, no azul árabe de Samrcanda, Amid Aka viu caminhar ao seu encontro dois forasteiros. Vinham ao fundo da avenida e, seguramente, procuravam chegar à sua loja, famosa pelas melancias que se comem durante o tempo em que as areias de deslocam. Num dado momento, os dois viraram em direcção do seu alpendre de madeira que cobre, de sombra, algumas mesas. No lavatório, apoiado contra o muro externo, lavaram as mãos. Amid Aka foi buscar duas melancias à loja fresca. Quando regressou, sob o alpendre, viu que um dos dois homens já não estava. Ao pousar as melancias, diante do que ficara, pergunta-lhe a razão pela qual seu amigo se ausentara. O homem fixou-o, com o rosto envolto numa expressão de perda. Limpou a fronte, coberta por gotas de suor, e, exausto, levantou-se da mesa dando sinais de partir. Mas antes disse: «Desde há algum tempo que todos me vêem na companhia de alguém». E afastou-se, pesaroso, caminhando ao longo da avenida coberta de pó.

TONINO GUERRA, Histórias de uma noite de Calmaria, Assírio & Alvim